Arquivo da tag: 7 de setembro 2022

Injustiça – Carta aos 16 anos

Nota: Em 1967, aos 16 anos de idade, ao tomar conhecimento da preterição – e, portanto, fim da carreira – de meu pai na Marinha, escrevi uma carta para ele contando da minha admiração pelo seu percurso, por seu caráter, e idealismo, e ao mesmo tempo compartilhando minha tristeza com a injustiça que (na minha opinião) tinha sido cometida. Era presidente do país o General Costa e Silva, e ministro da Marinha o Almirante Rademaker. Hoje, passados 58 anos, resolvi adicionar um PS àquela carta. Papai já não está mais entre nós, mas lembro-me sempre dele com saudade, e ainda escrevo pensando nele. Um resumo com a essência da carta original vem após o PS.



PS:

Após a publicação pelo Jornal do Brasil de um pequeno extrato de minha carta, recebemos em casa uma advertência do governo militar de que esse tipo de manifestação não seria tolerado e que poderia trazer consequências severas.

Ao ser preterido meu pai pediu transferência para a reserva, e despediu-se dos seus companheiros de farda “(na esperança de que) os mentalmente jovens prossigam na luta, combatendo em prol dos ideais renovadores para a criação de um país forte, e condizente com a sua grandeza.” Tudo levava a crer que a sua preterição, apesar de importantes sucessos como oficial engenheiro, tenha sido causada por seu espirito crítico e por sua luta constante em prol de inovação e progresso em todas as funções que ocupou, priorizando sempre um tratamento digno aos seus subordinados de todos os níveis. Sua participação numa chapa vitoriosa para o Clube Naval, liderada por um capitão-de-mar-e-guerra, e não por um almirante, não ajudou. Ele próprio resumiu assim: “Estou convencido de que essa decisão eliminatória é decorrência da atuação que tive durante toda a minha vida de oficial disciplinado, mas em luta permanente pela evolução da Marinha, e inconformado com a falta de espirito renovador.”

Compreendo hoje o efeito que esses acontecimentos tiveram nas decisões que tomei dali em diante. Dois anos depois, por exemplo, apesar de ter passado no vestibular para a Escola Naval, desisti do meu sonho de “enfrentar o mar no passadiço de um navio da armada.” Eu viajaria muito, muito mais do que teria imaginado naqueles dias, mas não com a bandeira brasileira no mastro do meu navio. Imagino que isso tenha acontecido com muitos outros que assim como eu eram jovens e sonhadores naquela época de medo, prisões sem explicação, e desaparecimentos.

Outro dia presenciei pela primeira vez uma parada naval. Foi por ocasião das comemorações do Dia da Independência, 7 de setembro de 2022, ao largo das praias de Ipanema e Copacabana no Rio de Janeiro. Fiquei surpreso ao perceber que um dos navios, uma imponente fragata, trazia o nome “Rademaker”, em homenagem ao almirante que participou ativamente de diversos governos da ditadura, foi um dos signatários do AI-5, e como ministro da Marinha avalizou a preterição do meu pai. A turba da extrema direita, ostentando a obrigatória camiseta da seleção, enlouquecia de felicidade sonhando ver em breve o seu líder e “mito”, enquanto eu chorava pelo que poderia ter sido.

Infelizmente preciso reconhecer que as afirmações esperançosas que fiz na conclusão da carta ao meu pai foram ingênuas. As injustiças ficaram sim, claro, na memória dos que as sofreram e presenciaram. Mas os responsáveis pelas injustiças e pelo terror continuam intocáveis, imunes, e até venerados por muitos na direita conservadora do Brasil que se dizem patriotas. Alguns até foram promovidos a nome de ponte e navio de guerra! Além disso, neste mundo dominado por plataformas digitais de alcance global – turbinadas pelas fortunas de empresários inescrupulosos – a verdade continua em guerra contra a mentira e a ignorância, mas não existe garantia alguma de que a verdade vá sair vitoriosa. Pelo contrário.


Extratos de uma carta a meu pai em 1967

Por mais que hoje a virtude seja ridicularizada, a honestidade desprezada, e o patriotismo considerado uma futilidade, eu passei a acreditar nessas coisas, em grande parte por causa do seu exemplo. É justamente por se terem arraigado tão sólidos esses sentimentos, que agora eu me revolto.

Quanta hipocrisia nas afirmações daqueles que vivem a se ufanar da pátria, a invocar a bandeira e a hierarquia; daqueles que se cobrem de branco e saem a balançar as medalhas na rua! Mas eles são fantasmas, não mais que o derradeiro eco da covardia e da fraqueza moral que tem assolado o Brasil. Eles desaparecerão na poeira do tempo.

Mas as injustiças que eles praticaram ficarão, não para desanimar as gerações vindouras, mas para servir-lhes de exemplo, e para mostrar-lhes que por mais que a verdade seja combatida, por mais que ela seja eclipsada pela ignorância e pela cegueira, ela se incumbe de destruí-las.

Despedida da Marinha. Aquarela de meu pai em 1967.