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Desilusão – Onde Estás Pasárgada?

“Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei.”

– Manuel Bandeira

Quem diria, acabei vindo morar em Pasárgada! Mas se após trinta e tantos anos fiz raros amigos, e nunca fui apresentado ao rei, verdade seja dita, encontrei aqui a mulher que amo e amei. Afirmo, porém, que hoje se pudesse voltaria com ela pra terra do Vinicius e do Ary, onde o mundo se enche de graça por causa do amor , e podemos amarrar a rede em coqueiro que dá coco e a lua vem brincar com a gente .

Veja só a diferença: Se abro a boca em Pasárgada, imediatamente me perguntam de onde sou e como vim parar aqui. O sotaque e a cor da pele me denunciam. Já na terra onde o sabiá canta nas palmeiras , desembarco no aeroporto e em 5 minutos estou batendo papo com o motorista do taxi, que não faz a menor ideia, nem quer saber, de onde eu vim, ou porque cargas d’água me lembro de bonde no Bar Vinte (onde?) 70 anos atras, mas não sei o que se passou de interessante na Tijuca semana retrasada.

Então me perguntas, porque não faço as malas, jogo fora os casacões e a pá de neve, e embarco de volta? Ah, porque é difícil! Com o tempo a gente vai lançando ancoras e amarras por onde passa. Sogros, filhos, netos, seguros de saúde, médicos conhecidos e cachorro, além do medo da mudança e a preguiça de recomeçar. Assim a ancora foi se aprofundando cada vez mais e agora está presa no fundo.

Outono na Pensilvania (Foto CAMS)


Permaneço, pois, nesta terra, onde não sabem pronunciar meu nome (como se escreve mesmo? podes soletrar?) e tenho a sensação de que me olham do alto de suas tamancas pasargadenses. Sim, as ilhas e o mar são magníficos, e é emocionante ver as cerejeiras florescerem com os picos da serra cobertos de neve ao fundo. Mas ao anoitecer, quando lembro da infância e da juventude, do barulho das ondas na praia, da luzinha do farol ora branca, ora vermelha refletindo na parede do quarto, e do cheirinho gostoso da padaria da esquina, a cabeça – sem pedir licença! – alça voo e viaja sozinha de volta.

A existência aqui não é uma aventura e muito menos uma aventura inconsequente. É dura e competitiva tanto ou mais que em qualquer outro lugar. Mas a gente vem atraído por um sonho de oportunidade, segurança, tolerância, e respeito às leis. A gente vem chamado pelas palavras na estátua (“a mim os seus fatigados, os seus pobres, as suas massas encurraladas com sede de liberdade” ), e pelos sucessos de tantos que vieram antes de nós. A gente vem acreditando que haverá líderes, políticos, e patrões corruptos, mas que a lei será cumprida e que ela se aplicará igualmente a todos. A gente vem farto da desordem, do nepotismo, e da corrupção com impunidade para os poderosos; cansado de mentiras, da inflação, da repressão, da censura, da violência, e da arrogância estúpida de líderes incompetentes. A gente vem atraído pela promessa escrita na constituição segundo a qual aqueles que aqui nascerem serão cidadãos do país, com os mesmos direitos e obrigações que têm aqueles que chegaram aqui antes de nós.

Estátua da Liberdade (Foto HRMS)

Infelizmente não se passa mais assim em Pasárgada. O rei, ou tem imunidade, ou seu exército de advogados o protege de qualquer delito, até mesmo o de instigar um quebra-quebra nas instituições mais sagradas do país. A polícia de imigração está solta com poderes para arrancar crianças de salas de aula, e as enviarem a campos de detenção antes de serem deportadas. Censores estão liberados para banir livros, coibir ideias, cancelar professores que dizem que o rei está nu, e prender jornalistas que contam histórias de como um rei sem roupa conseguiu ser eleito por mais de metade da população. As massas que coroaram o rei festejam nas ruas e comemoram a prometida volta a um passado supostamente idílico, a caça a políticos honrados de todos os partidos (inclusive do seu próprio), e a elevação a cargos ministeriais de bajuladores venais e personagens de televisão. Enquanto isso o bobo da corte faz saudações nazistas (talvez por distração?), lança foguetes que dão marcha-a-ré, e é tão rico que raro é o deputado ou senador com estofo para discordar dele ou do rei a quem ele serve. Os picos nevados ainda são lindos e estão a refletir o sol nascente em cor rosa-dourada. Mas a “cidade luminosa na montanha” (shining city on a hill) está se apagando. O sonho que era a Pasárgada da minha juventude mais parece um conto do vigário.

Volto então os olhos para a terra que deixei num passado distante, e fico triste de ver que lá também ainda tem presidente corrupto de esquerda bajulando déspotas estrangeiros que ignoram a vontade popular em seus países, e presidente venal de direita desrespeitando a vontade popular e encorajando golpe e baderna no seu próprio país. Dói ver uma nação com tanta promessa, dividida: uma ala freneticamente liberal, uma ala freneticamente conservadora, e espremida no meio a maior parte da população, atordoada com o barulho, as conspirações, e as ameaças insanas dos dois extremos. A tragédia do meio é que o poder tende para os extremos. O encanto do meio é que lá estão os que preferem torcer pela seleção nacional em paz, sem que essa expressão de amor à pátria seja interpretada como apoio político a quem quer que seja. Lá estão os que apreciam um samba gostoso, uma festinha de São João, e um réveillon na praia à luz de fogos de artificio e pé descalço, sem se preocuparem em verificar se a pessoa ao lado tem a mesma orientação política ou reza para o mesmo deus. O drama do meio é que lá estão o motorista de taxi aflito com que a féria do dia seja suficiente para pagar o custo do carro; a empregada doméstica que estuda à noite para melhorar de vida; e o trabalhador de fábrica, suando para dar uma vida digna à sua família, que será substituído mês que vem por um robô com inteligência artificial. Onde está a Pasárgada que eles merecem?

Se não está aqui nem acolá, precisamos mudar de estratégia e procurar Pasárgada dentro de nós mesmos, no lugar onde estamos. Nós seremos Pasárgada! Deve ser possível, desde que os ânimos se acalmem, os loucos se amansem, inclusive a Rainha Joana da Espanha e outros bem conhecidos. Aqui mesmo passearemos de bicicleta, tomaremos banho de rio, e construiremos o país sonhado para que nossos filhos e netos continuem depois. E pedindo desculpas a Manuel Bandeira, quando eu estiver triste e saudoso, “triste de não ter jeito”, cansado da luta e vontade de relaxar, não me interessa se estou em Pasárgada ou não, quero estar onde me querem, onde não me acham diferente ou estranho, e onde o chão me conhece.

Homem caminhando sobre dunas perto de Natal, RN (Foto CAMS)