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Guerra – Os Canhões da Praia

O forte fica na Ponta da Igrejinha, no extremo sul da praia. Quando foi inaugurado em 1914 não havia igual na América do Sul em termos de resiliência e poder de fogo. O costão rochoso que o emoldura, e um recife isolado que fica a pequena distância ao longo do seu eixo principal, provocam ressacas memoráveis, pois o mar ali se estende irrestrito até a África e a Antártida. A sudoeste do forte, caminhando cerca de 800 metros através da Praia do Diabo, atingimos a Pedra do Arpoador, e pouco depois a Praia de Ipanema. A Ponta do Leme, em cima da qual está plantado o Forte Duque de Caxias, fica 3,4 quilômetros ao nordeste da Ponta da Igrejinha. Entre as duas pontas e as duas fortalezas se espalha um dos bairros mais vibrantes do Rio: a “princesinha do mar”, Copacabana. Enquanto operacionais, os canhões do forte podiam atingir alvos a até 23 quilômetros de distância com projeteis de quase meia tonelada, defendendo a entrada da Baia de Guanabara num setor de 150°, desde Piratininga ao leste até a Ponta da Joatinga ao sudoeste. Atualmente as torres da fortaleza já estão em silencio há mais de meio século e assim permanecerão para sempre, pois com o tempo o desgaste natural e a corrosão imobilizaram os seus mecanismos de pontaria e municiamento. A antiga praça de guerra virou museu, restaurante, e programa de fim de semana, e assim atrai dezenas de milhares de visitantes ao ano.

Visitei o forte ao entardecer num dia de inverno, quando ele completava 110 anos. Entreguei minha entrada ao soldado de plantão e segui por um caminho em rampa suave, bem arborizado, tendo do lado esquerdo a praia, e do lado direito construções de alvenaria caiada de branco com os escritórios, alojamentos, e outras instalações auxiliares do forte. O mar estava calmo, a praia luminosa pintada de barracas e pipas, e naquela hora apenas crianças e gaivotas vez por outra quebravam a paz. A casamata, impressionante pela espessura das suas paredes e pelo projeto de engenharia que permitiria ao forte continuar em ação mesmo sob pesado fogo inimigo, estava à minha frente. Entrei, e fui relembrando antigas lições de história do Brasil através das exposições do museu. Um dos eventos mais significativos envolvendo o forte ocorreu em 1922, três anos e meio após o término da 1ª Guerra Mundial, e ficou conhecido como o episódio dos “Dezoito do Forte”.

Diante de um sistema eleitoral manipulável e sem a proteção do voto secreto, o Brasil permaneceu refém de elites que se alternavam no poder durante toda a Primeira República (1898-1930). O direito ao voto era limitadíssimo – apenas cerca de 2,5% da população participava das eleições presidenciais – e, portanto os resultados das eleições careciam de representatividade. Ao término do mandato de Epitácio Pessoa, havia muita insatisfação com o governo e com a direção em que caminhava o país, sobretudo entre o oficialato mais jovem. Sob a liderança do Marechal Hermes da Fonseca – ex-ministro da guerra e ex-presidente da república – uma parcela dos militares se revoltou. Durante a rebelião, militares aquartelados no Forte de Copacabana abriram fogo em direção à cidade, mirando o Palácio do Catete, o Forte Duque de Caxias, a Ilha das Cobras e o prédio do Ministério da Guerra, causando fatalidades nos dois últimos. Trocaram também tiros com o Encouraçado São Paulo que havia levantado ferro juntamente com o Minas Geraes para tentar subjugar a fortaleza.

Encouraçado Minas Geraes

Imagine-se o quadro: um navio brasileiro lançando projeteis de 305 mm contra um forte em Copacabana, cuja blindagem os projeteis do navio não poderiam penetrar. O forte, por sua vez, podendo lançar projeteis explosivos também de 305 mm capazes de perfurar a couraça e destruir o navio com seus mil e tantos tripulantes. Felizmente nenhum disparo de parte a parte causou maiores danos. Por fim o movimento não obteve apoio suficiente de oficiais mais graduados, outros focos rebeldes se renderam , e ficou claro que as forças do governo sairiam vitoriosas. Num gesto final de coragem e desafio, dezoito que ainda resistiam dentro do forte saíram para enfrentar cerca de três mil soldados leais ao governo. Só dois desses revoltosos sobreviveram, ainda que bastante feridos: Siqueira Campos e Eduardo Gomes. O governo agiu com severidade contra os revolucionários, e o Marechal Hermes ficou preso no mesmo forte que havia construído.

A bordo do Cruzador Tamandaré (Foto CAMS)

O episódio dos dezoito tem importância quase mística na memória da nação , e marcou o início de um longo período de crises, revoltas, marchas e contramarchas país afora. O forte trocou tiros contra o Encouraçado São Paulo novamente em 1924, porém desta vez quem carregava amotinados era o navio. Atiçado pela depressão econômica mundial, eclodiu em 1930 o golpe de Getúlio Vargas. Entretanto, um quarto de século mais tarde, apesar de progressos importantes em termos de industrialização e nas leis sociais e trabalhistas, a nação permanecia rachada. Em 1955 o Forte de Copacabana abriu fogo contra o Cruzador Tamandaré: a Marinha tentava impedir a volta do Getulismo, enquanto o Exército preferia respeitar o voto popular.

Quanto aos eventos que vieram depois já tenho lembranças próprias. Do período anterior ao golpe de 1964 recordo o medo de uma eventual ditadura repressiva no estilo soviético. Como aluno do Colégio Pedro II no Humaitá, lembro-me da promessa de uma aurora democrática com Castelo Branco, da decepção com o anoitecer deflagrado pelo quinto ato institucional, e do terror deslanchado por uma ditadura repressiva no estilo brasileiro. O Forte de Copacabana serviu de calabouço para prisioneiros políticos, mas não encontrei no museu exibição sobre isso. Não tem placa nas celas onde ficaram os prisioneiros, nem explicação sobre a sorte dos que desapareceram país afora sem deixar vestígio. Da tortura que houve, no forte ou noutras prisões, os gritos das vítimas não estão registrados. Teve anistia declarada pelo próprio regime militar, e pouquíssimos foram punidos até hoje. O museu e suas vitrines quedam mudas, mas as paredes, as grades, e os caminhos do forte carregam ecos do passado.

Lembro finalmente de um dia em setembro de 2022, um século após a marcha corajosa dos dezoito, quando o forte foi pano de fundo para um comício gigante, em que dezenas de milhares de brasileiros ouviram o presidente sugerir que as eleições daquele ano seriam fraudadas, e que, portanto, ele só deixaria a presidência “preso ou morto”. Vieram tiros e fumaça do forte, mas eram apenas salvas comemorativas. A multidão coberta de verde e amarelo temia outra vez o fantasma de um governo autoritário de esquerda. Felizmente ninguém saiu marchando armado nem foi morto naquele dia por causa do discurso do presidente, embora alguns tenham fugido para Miami e outros partido para depredar a sede do governo na capital do país. Mas vocês conhecem bem essa história.

Tendo visto a casamata subi ao topo da cobertura de 4 metros de espessura que a protege. Queria finalmente ver os canhões, e olhar junto com eles em direção ao horizonte de onde viriam as esquadras inimigas em tempos passados. Qual não foi a minha decepção quando percebi que os canhões do forte estavam apontados em direção à cidade. A cúpula número 1, com calibre de 305 mm, mira um ponto entre a Escola Dr. Cicero Penna e o hotel mais famoso do Rio. A cúpula número 2, com calibre de 190 mm, aponta entre as ruas Almirante Gonçalves e Miguel Lemos. Teria sido emocionante mirar ao longo dos tubos imaginando algum perigo que viesse do mar. Em vez disso avistei os prédios da Avenida Atlântica.

Enquanto o forte era parte ativa do sistema de artilharia de costa, seus canhões precisavam mudar de posição periodicamente. Isso porque o peso dos tubos é tão grande que se ficassem sempre na mesma posição provocariam um afundamento na estrutura de suporte e pontaria da cúpula. Portanto, era normal que os tubos da fortaleza estivessem vez por outra apontando para pontos em terra. É pena, porém, que as últimas guarnições que ainda poderiam ter manobrado com os canhões não tenham pensado em deixá-los apontados em direção ao mar aberto, contra um agressor imaginário, e não contra a cidade que eles estavam ali para defender. Ainda que somente pelo efeito simbólico que esse direcionamento teria no futuro.

Quando me dirigi de volta ao pórtico do forte, dezenas de visitantes passeavam e tomavam chá servidos por garçons de uniforme branco. Aproveitavam seus momentos de lazer como se coadjuvantes num palco histórico e lindo. Mas o forte e seus canhões, apontando diretamente para o coração do bairro, nos lembram de todas as vezes em que pegamos em armas contra nossos compatriotas, e nos acusam de omissão. Omissão de não querer ouvir opiniões divergentes. Omissão por ignorar o pleito de alguém que não é do nosso time nem veste a mesma camisa. Omissão por nos acharmos melhores do que os do outro lado, sem lhes dar chance honesta para se explicarem. Omissão de forçar uma solução violenta quando o jogo vai contra nós. Omissão de não querer saber e de apenas “sorrir e acenar” cinicamente. Nos omitirmos é fácil e covarde. Encontrarmos as soluções que permitirão reconciliar facções, unir o país, e construir um futuro melhor para os nossos filhos e netos, é duro e requer coragem.

Farol da Barra, Salvador – Bahia. Aquarela de meu pai, 1943.

Auriverde Pendão da Nossa Terra

“Estejam em paz, espalhem o seu amarelo (abundância)
e o seu azul-verde (vida nova)!”
Popol Vuh: História da Criação segundo os povos Maia-Quiché.

Cores vivas estalando na brisa e dizendo, “Aqui estou Brasil! Presente!” É a nossa bandeira.1 Ao balançar ela arrepia e acelera o coração. Lembro-me dela no pátio do colégio, terceira serie ou coisa parecida, cantando o hino com a professora na frente da turma. Da Marinha, guardo memória da cerimônia solene de içá-la pela manhã, e arriá-la ao pôr do sol, seja em terra ou no mar. As mesmas cores, se um pouco desbotadas, vi alegrando um futebol de crianças, em campo simples de chão, frente ao Corte de Cantagalo no Rio. Meio sofrida, mas ainda alegre e confiante, na popa de um bananeiro “poque-poque” cruzando a baia de Sepetiba. E a inigualável explosão de verde e amarelo, entre faixas, murais, e flamulas, ao ritmo de samba, em ruas pelo Brasil afora, quando saía vitoriosa a Seleção Canarinho. Em dias alegres ou tristes, em casas simples ou ricas, a civis e militares, ela pertence a todos sem exceção. A bandeira representa e ilumina nossa história, nossos desafios, e nossos sonhos como povo e nação. Ou, pelo menos, assim deveria ser.

Festa em Ipanema na Copa do Mundo de 1970 (Foto CAMS)

Me espanta que de uns anos para cá, em ruas e praças país afora, nossa bandeira lembre um partido mais do que outros. Certos candidatos a cargo eletivo mais do que outros. E assim tenha virado, ou esteja virando, um símbolo das divisões que existem entre nós, ao invés de representar o tanto mais que nos une. Nesse papel ela ornamenta sarongues, camisetas, lenços de cabeça, e toalhas de banho, e parece dizer que aqueles que a adotaram como símbolo da sua maneira de pensar, ou do seu candidato preferido, são mais brasileiros e mais patriotas do que os demais. A meu ver, um contrassenso. Quero sugerir que, ou aqueles que a monopolizaram para si criam outra que os represente, ou todos os brasileiros, de qualquer partido, passem a se vestir de verde e amarelo da cabeça aos pés em suas campanhas, marchas e comícios. A mesma sugestão vale para a camisa e demais apetrechos da Seleção Canarinho.

Por do sol na Bahia (Foto CAMS)

Querendo achar algo na bandeira que diga “sou de todos os brasileiros”, estudei um pouco a sua história. O desenho básico da bandeira foi idealizado pelo artista francês Jean-Baptiste Debret em 1820, a pedido de D, Joao VI, após o Brasil ter sido designado como sede do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. De acordo com a Professora Cecília Helena Oliveira do Museu Paulista da USP, o conceito de Debret é original em relação a outras bandeiras nacionais, pois o losango dentro de um retângulo focaliza a visão no centro da imagem, e o valoriza. As cores do pavilhão de Debret lembram a família real daquela época: verde para a Casa de Bragança, de Dom Pedro I, e amarelo para a Casa de Habsburgo-Lorena, de Dona Leopoldina. Outra interpretação — mais duradoura pois independe de dinastias históricas ou formas de governo — é que as cores da bandeira descrevem o que existe de mais belo e rico em nossa terra: verde para as florestas e amarelo para as reservas minerais. Ou, conforme palavras do próprio Dom Pedro I, o verde e o amarelo “representam a riqueza e a primavera eterna do Brasil”. É interessante notar que nem a independência nem a declaração da república, alteraram essas duas cores básicas ou a geometria losango-retângulo. Apenas o centro mudou, e não mais lembra as armas de determinada família real. Agora um círculo azul com 27 estrelas distribuídas conforme avistadas no céu do Rio ao anoitecer do dia 15 de novembro de 1889, comemora a beleza do nosso céu, rios e mares, e representa as unidades da federação.

Mas onde estão na bandeira a união do povo, e o sentimento de que somos uma nação? Onde está a mensagem “sou de todos; não me agitem para representar um grupo ou facção em detrimento de outros; não me desfraldem para se vangloriar enquanto menosprezam outros brasileiros!” Florestas, rios e mares, por mais belos que sejam, não nos transformam em nação. Se a bandeira nos representa como povo, ela deveria anunciar também que existe algo que nos une que é mais forte do que tudo que nos diferencia. A “cola” que justifica nos chamarmos um país, uma nação, um Brasil. Ao longo dos anos, cantando o hino em festas nacionais, ou torcendo pela Seleção, deveríamos ter aprendido a vê-la como símbolo do país todo. Mas a experiencia recente nega esse aprendizado.

Eu buscava um significado alternativo para as cores da bandeira, quando encontrei por acaso, ao visitar o Museu de Arte de Los Angeles (LACMA), uma referência à História da criação segundo o povo Maia-Quiché (ou K’iché) que já habitava a Mesoamérica há mais de 15 séculos. “Para os Maia do período clássico (250 EC a 900 EC) o amarelo e o azul-verde se completavam, formando um todo harmonioso, posto que representam um ciclo agrícola completo: desde o verde intenso da germinação nova, até o amarelo dos frutos maduros. A complementaridade dessas cores transmitia beleza, vitalidade, e abundância”, e era tão importante que em sua língua “a junção do glifo correspondente ao azul-verde (yax) com o glifo do amarelo (k’an) compõe a palavra tz’ak, que significa completo.” (Fonte: LACMA, placa descritiva na exibição sobre as culturas mesoamericanas.)

Vendedor de laranjas em Salvador (Foto CAMS)

Porventura esteja aí uma interpretação para o desenho da nossa bandeira que além de lembrar dinastias historicamente importantes, e comemorar a riqueza das nossas terras, avisa enfaticamente que ela nos representa a todos, e que simboliza uma sociedade dinâmica (a ideia de um ciclo de vida continuo desde o verde-azul até o amarelo). E que apesar de existirem muitas diferenças de opinião entre nós, essas nos complementam e prometem uma nação vibrante, desde que tenhamos coragem para conversar sobre essas diferenças, e inteligência para harmonizá-las na busca de um caminho comum. Nessa visão as cores azul, verde, e amarelo representam um país inteiro (tz’ak), em que todos podem e querem exibir seu estandarte com orgulho, e a ideia de um grupo usando a bandeira para humilhar ou coagir outros brasileiros se torna repugnante.

Outro elemento importante na bandeira é a divisa “Ordem e Progresso” que ocupa posição central no círculo azul. Proposta para a bandeira em 1889 por Raimundo Teixeira Mendes, essa divisa é uma versão abreviada de um lema do Movimento Positivista de Auguste Comte: “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim.” Evidentemente não haveria espaço para que o lema original de Comte fosse reproduzido inteiramente na bandeira. Porem, nesses dias em que existe tanta hostilidade entre os seguidores das diversas correntes políticas no Brasil, gerando rupturas serias até mesmo entre cônjuges, irmãos, pais e filhos, vale a pena lembrar que amor foi um princípio fundamental para os idealizadores da República, e que este sentimento faz parte da bandeira brasileira.

É importante que aqueles que carregam a bandeira e a proclamam como sua, qualquer que seja a sua orientação política, entendam o que ela significa. Se, como proclamam as cores da bandeira somos um povo inteiro, o pavilhão nacional não deve ser usurpado por um ou outro grupo. Se amor é um princípio fundamental para a nação, é preciso que nos esforcemos para construir um futuro comum em harmonia e isso significa engajar em discussões honestas e francas. Se ordem é o alicerce para a construção do nosso futuro, é preciso que as leis e instituições sejam respeitadas, especialmente por nossos líderes. E se progresso é o objetivo final, cumpre estejamos abertos a caminhos novos, busquemos o que é verdadeiro, e rejeitemos teorias fantasiosas sem base nos fatos. Vale lembrar que Comte, inspirador da divisa central da bandeira, acreditava fortemente no método científico e defendia que pesquisa científica ocorresse ao largo de preferências ou opiniões pessoais.

Cores vivas estalando na brisa. Ao balançar ela nos junta numa só emoção.

  1. O título faz referência a uma estrofe do poema “Navio Negreiro” de Castro Alves: “Auriverde pendão de minha terra, / Que a brisa do Brasil beija e balança, /”, publicado em 1880. ↩︎
Aquarela de meu pai, data desconhecida.