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Auriverde Pendão da Nossa Terra

“Estejam em paz, espalhem o seu amarelo (abundância)
e o seu azul-verde (vida nova)!”
Popol Vuh: História da Criação segundo os povos Maia-Quiché.

Cores vivas estalando na brisa e dizendo, “Aqui estou Brasil! Presente!” É a nossa bandeira.1 Ao balançar ela arrepia e acelera o coração. Lembro-me dela no pátio do colégio, terceira serie ou coisa parecida, cantando o hino com a professora na frente da turma. Da Marinha, guardo memória da cerimônia solene de içá-la pela manhã, e arriá-la ao pôr do sol, seja em terra ou no mar. As mesmas cores, se um pouco desbotadas, vi alegrando um futebol de crianças, em campo simples de chão, frente ao Corte de Cantagalo no Rio. Meio sofrida, mas ainda alegre e confiante, na popa de um bananeiro “poque-poque” cruzando a baia de Sepetiba. E a inigualável explosão de verde e amarelo, entre faixas, murais, e flamulas, ao ritmo de samba, em ruas pelo Brasil afora, quando saía vitoriosa a Seleção Canarinho. Em dias alegres ou tristes, em casas simples ou ricas, a civis e militares, ela pertence a todos sem exceção. A bandeira representa e ilumina nossa história, nossos desafios, e nossos sonhos como povo e nação. Ou, pelo menos, assim deveria ser.

Festa em Ipanema na Copa do Mundo de 1970 (Foto CAMS)

Me espanta que de uns anos para cá, em ruas e praças país afora, nossa bandeira lembre um partido mais do que outros. Certos candidatos a cargo eletivo mais do que outros. E assim tenha virado, ou esteja virando, um símbolo das divisões que existem entre nós, ao invés de representar o tanto mais que nos une. Nesse papel ela ornamenta sarongues, camisetas, lenços de cabeça, e toalhas de banho, e parece dizer que aqueles que a adotaram como símbolo da sua maneira de pensar, ou do seu candidato preferido, são mais brasileiros e mais patriotas do que os demais. A meu ver, um contrassenso. Quero sugerir que, ou aqueles que a monopolizaram para si criam outra que os represente, ou todos os brasileiros, de qualquer partido, passem a se vestir de verde e amarelo da cabeça aos pés em suas campanhas, marchas e comícios. A mesma sugestão vale para a camisa e demais apetrechos da Seleção Canarinho.

Por do sol na Bahia (Foto CAMS)

Querendo achar algo na bandeira que diga “sou de todos os brasileiros”, estudei um pouco a sua história. O desenho básico da bandeira foi idealizado pelo artista francês Jean-Baptiste Debret em 1820, a pedido de D, Joao VI, após o Brasil ter sido designado como sede do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. De acordo com a Professora Cecília Helena Oliveira do Museu Paulista da USP, o conceito de Debret é original em relação a outras bandeiras nacionais, pois o losango dentro de um retângulo focaliza a visão no centro da imagem, e o valoriza. As cores do pavilhão de Debret lembram a família real daquela época: verde para a Casa de Bragança, de Dom Pedro I, e amarelo para a Casa de Habsburgo-Lorena, de Dona Leopoldina. Outra interpretação — mais duradoura pois independe de dinastias históricas ou formas de governo — é que as cores da bandeira descrevem o que existe de mais belo e rico em nossa terra: verde para as florestas e amarelo para as reservas minerais. Ou, conforme palavras do próprio Dom Pedro I, o verde e o amarelo “representam a riqueza e a primavera eterna do Brasil”. É interessante notar que nem a independência nem a declaração da república, alteraram essas duas cores básicas ou a geometria losango-retângulo. Apenas o centro mudou, e não mais lembra as armas de determinada família real. Agora um círculo azul com 27 estrelas distribuídas conforme avistadas no céu do Rio ao anoitecer do dia 15 de novembro de 1889, comemora a beleza do nosso céu, rios e mares, e representa as unidades da federação.

Mas onde estão na bandeira a união do povo, e o sentimento de que somos uma nação? Onde está a mensagem “sou de todos; não me agitem para representar um grupo ou facção em detrimento de outros; não me desfraldem para se vangloriar enquanto menosprezam outros brasileiros!” Florestas, rios e mares, por mais belos que sejam, não nos transformam em nação. Se a bandeira nos representa como povo, ela deveria anunciar também que existe algo que nos une que é mais forte do que tudo que nos diferencia. A “cola” que justifica nos chamarmos um país, uma nação, um Brasil. Ao longo dos anos, cantando o hino em festas nacionais, ou torcendo pela Seleção, deveríamos ter aprendido a vê-la como símbolo do país todo. Mas a experiencia recente nega esse aprendizado.

Eu buscava um significado alternativo para as cores da bandeira, quando encontrei por acaso, ao visitar o Museu de Arte de Los Angeles (LACMA), uma referência à História da criação segundo o povo Maia-Quiché (ou K’iché) que já habitava a Mesoamérica há mais de 15 séculos. “Para os Maia do período clássico (250 EC a 900 EC) o amarelo e o azul-verde se completavam, formando um todo harmonioso, posto que representam um ciclo agrícola completo: desde o verde intenso da germinação nova, até o amarelo dos frutos maduros. A complementaridade dessas cores transmitia beleza, vitalidade, e abundância”, e era tão importante que em sua língua “a junção do glifo correspondente ao azul-verde (yax) com o glifo do amarelo (k’an) compõe a palavra tz’ak, que significa completo.” (Fonte: LACMA, placa descritiva na exibição sobre as culturas mesoamericanas.)

Vendedor de laranjas em Salvador (Foto CAMS)

Porventura esteja aí uma interpretação para o desenho da nossa bandeira que além de lembrar dinastias historicamente importantes, e comemorar a riqueza das nossas terras, avisa enfaticamente que ela nos representa a todos, e que simboliza uma sociedade dinâmica (a ideia de um ciclo de vida continuo desde o verde-azul até o amarelo). E que apesar de existirem muitas diferenças de opinião entre nós, essas nos complementam e prometem uma nação vibrante, desde que tenhamos coragem para conversar sobre essas diferenças, e inteligência para harmonizá-las na busca de um caminho comum. Nessa visão as cores azul, verde, e amarelo representam um país inteiro (tz’ak), em que todos podem e querem exibir seu estandarte com orgulho, e a ideia de um grupo usando a bandeira para humilhar ou coagir outros brasileiros se torna repugnante.

Outro elemento importante na bandeira é a divisa “Ordem e Progresso” que ocupa posição central no círculo azul. Proposta para a bandeira em 1889 por Raimundo Teixeira Mendes, essa divisa é uma versão abreviada de um lema do Movimento Positivista de Auguste Comte: “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim.” Evidentemente não haveria espaço para que o lema original de Comte fosse reproduzido inteiramente na bandeira. Porem, nesses dias em que existe tanta hostilidade entre os seguidores das diversas correntes políticas no Brasil, gerando rupturas serias até mesmo entre cônjuges, irmãos, pais e filhos, vale a pena lembrar que amor foi um princípio fundamental para os idealizadores da República, e que este sentimento faz parte da bandeira brasileira.

É importante que aqueles que carregam a bandeira e a proclamam como sua, qualquer que seja a sua orientação política, entendam o que ela significa. Se, como proclamam as cores da bandeira somos um povo inteiro, o pavilhão nacional não deve ser usurpado por um ou outro grupo. Se amor é um princípio fundamental para a nação, é preciso que nos esforcemos para construir um futuro comum em harmonia e isso significa engajar em discussões honestas e francas. Se ordem é o alicerce para a construção do nosso futuro, é preciso que as leis e instituições sejam respeitadas, especialmente por nossos líderes. E se progresso é o objetivo final, cumpre estejamos abertos a caminhos novos, busquemos o que é verdadeiro, e rejeitemos teorias fantasiosas sem base nos fatos. Vale lembrar que Comte, inspirador da divisa central da bandeira, acreditava fortemente no método científico e defendia que pesquisa científica ocorresse ao largo de preferências ou opiniões pessoais.

Cores vivas estalando na brisa. Ao balançar ela nos junta numa só emoção.

  1. O título faz referência a uma estrofe do poema “Navio Negreiro” de Castro Alves: “Auriverde pendão de minha terra, / Que a brisa do Brasil beija e balança, /”, publicado em 1880. ↩︎
Aquarela de meu pai, data desconhecida.