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Opressão – A Saga dos Puris de Queluz

“Passei córgo, passei rio, subi morro e passei mato
Vi a cruz de Passa Quatro, vi cabôco frechadô;
Andei perdido no sertão lá do Embaú,
Fui mordido de urutu… Mongo Veio não vortô…”

Chôro do Mongo Velho, Tradição Popular.

Ao fim do século XVIII Dona Maria I (a louca) era rainha em Portugal, e o Conde de Resende era vice-rei no Brasil. Na Europa os exércitos franceses difundiam as ideias liberais que no Brasil já tinham provocado a Inconfidência Mineira e a Conjuração Baiana. Enquanto isso, ao norte do Golfo do México, apenas as Treze Colônias haviam conquistado a independência, mas a ânsia pela autonomia estava se espalhando como fogo em capim seco por toda parte. A Grã-Bretanha sob o Rei Jorge III (louco também e aliado de Dona Maria) mantinha a armada francesa acuada em seus portos.

O mundo estava em ebulição, mas o Vale do Paraíba, entre Lorena e o Ribeirão do Salto, estava em paz. Do alto do Morro da Fortaleza, abria-se então como hoje uma vista magnifica do vale. Descendo de Cachoeira Paulista a oeste, o rio café com leite vem se aconchegando sinuosamente aos contrafortes da Mantiqueira, cercado de morros verde claro, escuro, e manchados de barro. A jusante daquele ponto o vale se expande de novo, e o Paraíba corre para Itatiaia mirando o Pico das Agulhas Negras. Em visada mais ou menos perpendicular ao curso das águas, ergue-se ali, na margem esquerda do rio, a Pedra da Mina, cujo ápice a 2798 metros é o ponto culminante do estado de São Paulo. Para completar o panorama, descortina-se ao longe na direção Sul-Sudeste o perfil azulado da Serra da Bocaina. Estando o Morro da Fortaleza a apenas cinco léguas da Garganta do Embaú – onde a estrada real Diamantina-Paraty transpunha a Serra da Mantiqueira – aquele local, além de propicio para lavouras de café e cana-de-açúcar, tinha acesso fácil ao mar, e era, portanto, economicamente atraente para Lisboa.

Habitavam então naquele trecho do Vale do Paraíba os puris, irmãos dos coroados, e inimigos mortais dos botocudos. Seus ancestrais já haviam se espalhado por todo o continente americano pelo menos doze mil anos antes que os primeiros aventureiros europeus se instalassem ali. Nômades por vocação, os puris viviam da caça, da pesca, e da coleta de alimentos silvestres, e quando necessário construíam habitações as mais singelas e passageiras. Falavam uma língua do tronco macro-jê, ignorando que um marquês de peruca em Lisboa tinha declarado em meados do século XVIII que a língua oficial do Brasil era o português. Guardavam profundo respeito pelo mundo natural à sua volta e com ele viviam em harmonia. Acreditavam na vida depois da morte, e colocavam uma escadinha ao pé do túmulo para ajudar o falecido ir para o céu.

Em 1798 o Capitão-General de São Paulo ordenou que os puris daquela região fossem “reduzidos” a uma nova aldeia que seria fundada às margens do rio, perto do Morro da Fortaleza, que se chamaria São João de Queluz. O objetivo do administrador era conseguir mão de obra barata para desenvolver a cultura do café, e assim aumentar o fluxo de riquezas para o exaurido tesouro da metrópole. “Reduzir” significava obrigar o puri a abandonar seus costumes, sua religião, e sua vida nômade e livre, para ir habitar em casa de alvenaria, adotando os costumes do invasor branco, rezando para um novo deus, e trabalhando no campo e nas obras necessárias de infraestrutura. A boa notícia era que os puris seriam donos de lotes de terra em Queluz, além dos equipamentos necessários para a lavoura. Não houve, porém, muitos voluntários para a oferta do capitão-general (nômade não se interessa muito por imóveis), e as tentativas de capturá-los no seu habitat natural estavam fracassando.

Entra em cena Vuitir, mongo (chefe) dos puris, de idade já avançada, mas forte ainda, querido e respeitado por seu povo. O Capitão-de-Ordenanças de Lorena pediu a Vuitir que tentasse convencer os puris a se mudarem para a nova aldeia e ali trabalharem. Vuitir anuiu sob pressão e logrou convencer 86 puris a descerem a serra e irem morar em Queluz. Isso feito, e com promessas dos responsáveis pelo território que dariam todo apoio aos puris enquanto se adaptavam à nova vida, Vuitir partiu para uma viajem de três anos para Lorena. Ao retornar, o mongo encontrou sua gente em estado precário. Doenças, alcoolismo, e desânimo profundo afetavam a maioria. Percebendo que os filhos do vale não seriam mão de obra adequada ou suficiente para desenvolver a região, os encarregados do projeto haviam trazido para Queluz africanos escravizados. Esses sofriam tratamento desumano, presos a correntes, trabalhando e vivendo sob a ameaça de chibatadas e outras torturas. Vuitir, o “selvagem inculto”, se enfureceu com tudo isso, rompeu com os portugueses brasileiros, e partiu para a serra para nunca mais ser visto, vivo ou morto.1

Por que Vuitir concordou com o “aldeamento” do seu povo, e por que teria partido para o exilio, privando os puris do seu apoio em horas tão duras, são questões difíceis de responder, já que ele não deixou carta explicando seus motivos. As ações de Vuitir se inserem num tempo em que os portugueses brasileiros agiam com extraordinário rigor contra os índios bravos, ou seja, os que se rebelavam contra o domínio estrangeiro. Nações inteiras foram dizimadas “a fio de faca”. Era prática comum os agentes do governo colonial espalharem entre nativos objetos contaminados com doenças contra as quais eles não tinham proteção. Eram rotineiros também estupros e casamentos forçados com o objetivo de aumentar o estoque de mão de obra (livre ou não), diluir a etnia das populações nativas, e anular a posse de terras que seriam por direito dos povos originais. Nesse cenário, em que a resistência traria riscos mais graves do que a submissão, a anuência em trazer os puris para a aldeia é compreensível. A partida para o exilio se justifica diante da ruptura de confiança entre Vuitir e os líderes civis e religiosos de Queluz, e o seu sentimento de responsabilidade por ter colocado os puris naquela situação. Ao se embrenhar na floresta num derradeiro gesto de sacrifício, Vuitir deixou de ser o líder amargurado de um povo vencido e se transformou em brado perene de revolta e de esperança na reconquista da liberdade:

“Foge, feitô, Mongo Véio vai vortá!
Foge, feitô, taruman, tarumá!”

Eu também, quero que o Mongo volte, e quando voltar imagino que seja recebido com uma grande festa para a qual seriam convidados os filhos dos puris e dos povos escravizados que suaram, sofreram, e morreram com eles, além dos descendentes dos tupis, aymorés, botocudos, e outros dizimados pela perfídia dos invasores que vieram sob a égide da cruz e da civilização.

Nesse dia e nessa festa seria bom se pudéssemos contar ao venerando chefe, que no Brasil de hoje os trabalhadores são tratados com justiça e dignidade, qualquer que seja o seu nível, etnia, nome de família, ou posição social. Seria fantástico ainda, dançarmos ao ritmo de canções alegres de boas-vindas, com as cadencias e gingas de todas as culturas e tradições do Brasil, e afirmar ao saudoso chefe (se for verdade) que existe paz entre os brasileiros, e que sabemos dialogar quando discordamos sobre qual trilha seguir quando a estrada se bifurca na nossa frente.

O mongo vai querer notícias da sua mata querida, dos rios e dos bichos que povoavam o seu mundo de outrora. Alguém vai precisar contar para ele que a onça pintada está ameaçada de extinção2, que a arara-azul praticamente desapareceu no Brasil3, e que ocorrem anualmente incêndios devastadores no Pantanal4 e na bacia do Amazonas5. E sem dúvida ele vai indagar sobre os políticos, militares, e párocos que mentiram para ele. Vai ser triste ter que explicar que os nossos políticos continuam corruptos, inclusive a nível de cacique do país todo. Um já esteve preso, e o outro provavelmente o será. O mais complicado será contar que esses caciques não são nomeados pelo rei de parte alguma, mas escolhidos livremente pelo povo, e que eles ainda toleram – por cálculo político ou incompetência – que fazendeiros persistam matando indígenas e tomando suas terras. Com tantas conversas difíceis, vai precisar na festa muita pinga, quentão, carne seca e tutu-de-feijão, com doce de abóbora, cocada e pé-de-moleque.

Ouve-se ainda o rosnar da onça pintada nas alturas da Mantiqueira, e ecoa pelo vale o trovão de tempestades que faziam o rio transbordar. Embora não existam mais as corredeiras do Ribeirão do Salto (foram engolidas pela Represa do Funil), ainda existe esperança. Não sei vocês, mas por mim não posso mais esperar que o Brasil seja o país de um futuro indefinido que não chega nunca, pois nuvens carregadas estão no horizonte, e o mundo além-mar está cada vez mais povoado de déspotas perigosos. Inclusive a nação que até há pouco era modelo de liberdade e resistência a tiranias elegeu um presidente autoritário armado até os dentes com pretensões a coroa e império. O que acontece do outro lado do planeta pode repercutir no Brasil, no Vale do Paraíba e até nas ruazinhas de Queluz. E vice-versa.

Volta Vuitir!


  1. A revolta de Vuitir com o tratamento dos puris e africanos escravizados veio até nós desde os primeiros habitantes de Queluz através de tradições orais. O resto do relato se fundamenta em registros históricos preservados na Igreja da Matriz em Queluz. Fontes: “Histórias do Rio Paraíba” de João Baptista de Mello e Souza; “O Mistério do Mongo Velho”, peça de Ruth Salles; “Nas Trilhas do Vale” blog de Diego del Passo; e o site https://pt.wikipedia.org/wiki/Puris, acessado em 6/3/2025. ↩︎
  2. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-10/dia-dos-animais-on%C3%A7a-pintada-mata-atlantica , acessado em 3/13/2025. ↩︎
  3. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-06/ararinhas-azuis-sao-soltas-na-natureza-20-anos-depois-de-extincao, acessado em 3/13/2025. ↩︎
  4. https://brasil.mapbiomas.org/wp-content/uploads/sites/4/2024/07/Mapbiomas_Nota-Tecnica_Pantanal_12.07.24.pdf, acessado em 3/13/2025. ↩︎
  5. https://www.wwf.org.br/?89520/Amazonia-ja-tem-mais-de-50-mil-focos-de-fogo-em-2024-e-fumaca-se-espalha-pelo-pais, acessado em 3/13/2025.
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